A Quimera da Felicidade(...) do alto de uma
montanha, inclinei os olhos a uma das vertentes, e contemplei, durante um tempo
largo, ao longe, através de um nevoeiro, uma cousa única. Imagina tu, leitor,
uma redução dos séculos, e um desfilar de todos eles, as raças todas, todas as
paixões, o tumulto dos impérios, a guerra dos apetites e dos ódios, a
destruição recíproca dos seres e das cousas. Tal era o espectáculo, acerbo e
curioso espectáculo. A história do homem e da terra tinha assim uma intensidade
que não lhe podiam dar nem a imaginação nem a ciência, porque a ciência é mais
lenta e a imaginação mais vaga, enquanto que o que eu ali via era a condensação
viva de todos os tempos. Para descrevê-la seria preciso fixar o relâmpago. Os
séculos desfilavam num turbilhão, e, não obstante, porque os olhos do delírio
são outros, eu via tudo o que passava diante de mim, - flagelos e delícias, -
desde essa cousa que se chama glória até essa outra que se chama miséria, e via
o amor multiplicando a miséria, e via a miséria agravando a debilidade. Aí vinham
a cobiça que devora, a cólera que inflama, a inveja que baba, e a enxada e a
pena, úmidas de suor, e a ambição, a fome, a vaidade, a melancolia, a riqueza,
o amor, e todos agitavam o homem, como um chocalho, até destruí-lo, como um
farrapo. Eram as formas várias de um mal, que ora mordia a víscera, ora mordia
o pensamento, e passeava eternamente as suas vestes de arlequim, em derredor da
espécie humana. A dor cedia alguma vez, mas cedia à indiferença, que era um
sono sem sonhos, ou ao prazer, que era uma dor bastarda. Então o homem,
flagelado e rebelde, corria diante da fatalidade das cousas, atrás de uma
figura nebulosa e esquiva, feita de retalhos, um retalho de impalpável, outro
de improvável, outro de invisível, cosidos todos a ponto precário, com a agulha
da imaginação; e essa figura, - nada menos que a quimera da felicidade, - ou
lhe fugia perpetuamente, ou deixava-se apanhar pela fralda, e o homem a cingia
ao peito, e então ela ria, como um escárnio, e sumia-se, como uma ilusão.
Machado de Assis, in 'Memórias Póstumas de Brás Cubas' Link
Machado de Assis, in 'Memórias Póstumas de Brás Cubas' Link
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